O pequeno André, com nove anos, foi convidado para virar jogador do Flamengo. “Vou lá jogar bola e depois eu volto”, pensou a criança - que jamais voltaria. Quase duas décadas depois, ele é Andrezinho, um sujeito em busca de idolatria no Inter (o reconhecimento ele já tem), uma figura daquelas que mudam o conceito de tempo quando convocadas para um dedo de prosa, para lembrar as histórias do passado, para resgatar as idas e vindas de uma carreira na estrada – a precocidade no Rio, o espancamento de atletas na Coreia, o crescimento no Inter, tudo como consequência de uma trajetória iniciada inacreditavelmente cedo.
Na tarde desta segunda-feira, sentado junto a uma janela com vista para o Rio Guaíba, em Porto Alegre, Andrezinho concedeu entrevista exclusiva ao GLOBOESPORTE.COM. Na semana em que inicia a busca do sétimo título em quatro anos de Inter, o jogador falou por uma hora sobre as andanças de sua carreira, incluindo a parceria com Adriano na base do Flamengo, a amizade com “Sacanagem”, o coreano espancado, as alegrias alcançadas no Sul e a mágoa por ter visto, do banco de reservas, a maior derrota da história do Inter.
Campineiro, Andrezinho adotou o Rio e agora mora em Porto Alegre (Alexandre Alliatti/Globoesporte.com) Confira abaixo os principais trechos do bate-papo com o atleta que estará em campo na quarta-feira, na Argentina, contra o Independiente, para ajudar o Inter na luta pelo título da Recopa.
Sabe, Andrezinho, você sempre me pareceu o típico carioca, e agora fazemos essa entrevista aqui em Porto Alegre, com esse frio, chovendo...
E eu nem sou carioca. Nasci em Campinas. Mas, na verdade, sou meio carioca mesmo. Cheguei no Rio com nove anos. Fui adotado pelo Rio. Não sei viver sem o Rio. Tenho uma vida lá. Foi lá que conheci minha esposa, casei. Mas eu nasci em Campinas. A maior cidade que eu conhecia, até os nove anos, era Campinas.
Você foi ao Rio já para jogar?
Fui lá para jogar no Flamengo. Fui o jogador mais novo a entrar em uma concentração. Com nove anos, tinha aquela burocracia toda. Meus pais tiveram que ir ao juizado para dar autorização para eu morar na concentração. Imagina, com nove anos, estar em uma concentração... Os mais novos tinham 12, 13 anos. Eu tinha que fazer tudo sozinho. Tive que aprender a me virar sozinho.
Foi muito difícil?
Muito. No começo, com nove anos, eu não tinha noção do que era. Fui para lá porque gostava de jogar bola. O Rondinelli que me levou para lá. Eu via minha mãe e meu pai chorando quando eu estava me despedindo e não entendia nada. Para mim, ia jogar bola como se fosse ali, na rua. No Flamengo, era tudo novidade. Mas quando chegava a noite, esperava aquele beijo de boa noite da minha mãe. Olhava para o lado e me perguntava: “Cadê minha mãe?”. Aí que caía a ficha. Eu chorava. Tem pessoas até hoje no Flamengo, que trabalham lá, que foram de suma importância. Minha família foi o Flamengo.
As coisas aconteceram cedo para você, né?
Foi tudo muito precoce. Com nove anos, estava no Flamengo. Com 12 anos, já estava na categoria dos meninos de 14 ou 15. Com 15 anos, fui convocado para a seleção sub-17. Com 16 anos, estava estreando no profissional. Com 17, estava na seleção sub-20. As coisas foram todas muito precoces. Com 20 anos, estava me mudando, morando no exterior. Tanto que quando cheguei aqui, as pessoas falavam: “Pô, é aquele Andrezinho do Flamengo? Mas é muito velho!”. E eu com 28 anos...
Andrezinho chegou ao Flamengo com nove anos
(Foto: Reprodução) É "gato"...
(Risos) Todo mundo pergunta, ainda brinca. Perguntam se eu coloquei fogo no cartório. O Jô (atacante do Inter) falou que lembra de jogo, disso, daquilo, que me via nos jogos. E eu falo: “Espera aí, a gente tem quase a mesma idade!”. Pelas dificuldades por que passei, levo a vida com bom humor. Se acontecer alguma coisa ruim uma vez ou outra, eu lembro do que aprendi com o Rondinelli: rebobinar o filme. Para quem deixou pai, mãe, família, com nove anos, para ter a responsabilidade de sustentar uma família, de ser a estrela solitária, de ver depositarem toda a confiança em você, em uma idade em que você deveria estar brincando, não tem essa de se abalar com obstáculo pequeno. Levo tudo no bom humor.
Você tinha noção, na época, de que era a esperança da tua família?
Eu tive uma noção mais clara com 13 anos, quando comecei a ganhar uma ajuda de custo. Não ficava praticamente nada comigo. Ali, eu via que aquele dinheirinho, que hoje não significaria nada, ajudava, e muito, lá em casa. Eu via que dava uma melhorada na vida da minha família. Ali, comecei a ver que poderia ter essa responsabilidade. Com 15 anos, fomos campeões mundiais com a seleção sub-17. Os prêmios, os bichos que eu ganhava, eu guardava. Em 2000, pude dar uma casa a meus pais. Aí eu já estava nos profissionais. Eu era o único jogador que não tinha carro. Até os moleques do júnior e do juvenil tinham. E eu sempre tive os pés no chão. Comprar a casa para meus pais foi o maior sonho que realizei. Foi depois disso que comecei a pensar nos meus sonhos particulares. É por isso que sempre que acontece alguma coisa, eu rebobino o filme, vejo de onde saí, olho as dificuldades pelas quais passei. Eu poderia escrever um livro sobre minha vida...
Onde você jogava bola antes de ir para o Flamengo?
Jogava na rua, cara. Jogava em uns campinhos de terra. Com seis anos, um amigo falou da escolinha do Rondinelli. Meus pais não tinham condições de pagar. Mas a gente chegou lá, o Rondinelli olhou para nós e disse para ficarmos na escolinha. Com oito anos, ele falou: “Vou te levar para o Flamengo”. Eu pensei: “Jogar bola? Jogar bola no Flamengo? Vamos jogar bola!”. Não tinha noção do que era. Ele foi conversar com meus pais. Minha mãe começou a chorar, e o Rondinelli foi explicando, dizendo que ela iria comigo no início. E eu achando tudo aquilo muito irado!
Achava que era um passeio...
Isso! Achei que estava numa excursão. Pensei: “Vou lá jogar bola e depois eu volto”. Com nove anos, aconteceu tudo isso. Minha mãe foi, ficou um tempo comigo. Com uma semana de testes, decidiram que eu seria federado. Com 16 anos, virei profissional. A gente disputou o Mundial Sub-17. Quando a gente voltou, avisaram que eu e o Adriano teríamos que nos apresentar no profissional. Eu ia jogar com os caras que eu via jogando na televisão. Tinha o Alex, o Julio Cesar, o Juan, o Athirson. Estava tendo o Campeonato Brasileiro de Juvenis. Eu treinava e voltava. O Adriano saiu primeiro. Eu fui disputar a final do Brasileiro de Juvenil, e o Adriano foi para o jogo contra o São Paulo. Ficamos vendo o jogo, e o Adriano fez o gol. Ele estava ali com a gente e de repente estava na tevê fazendo gol. Na volta desse torneio, fui para o profissional e estreei contra o Botafogo. Aí fiquei direto. A gente foi disputar uma Copa dos Campeões, com o Zagallo de técnico, e no meio tinha várias feras. Eu tinha certeza de que não estaria na lista. Mas o Zagallo me levou. E a gente ganhou. Lembro que o Zagallo me incentivou muito, sempre falou comigo das dificuldades que eu teria, mas que minha hora iria chegar. As coisas foram atropeladas. Deveria ter tido mais tempo de preparação. Foi o Zagallo que me colocou de meia.
Ah, é? Foi uma ideia dele?
Sim. Eu era segundo atacante, junto com o Adriano. Era fácil ser atacante ao lado dele. Ele trombava e a bola sobrava (risos). Eu estava sempre ali. Para mim, era fácil. O Zagallo que começou a me colocar no meio.
Você tem histórias longas nos clubes. São apenas três equipes na sua carreira. Por que isso?
Só três. É uma das coisas das quais me orgulho. Cheguei ao Flamengo com nove anos e saí com 20. Na Coreia, fiquei quatro anos no mesmo clube, o Pohang. Eles queriam que eu ficasse, mas quando surgiu a oportunidade do Inter, fechei o olho e vim. Lembro até hoje da minha entrevista quando cheguei. Disse que não vinha para usar o Inter como ponte para a Europa ou coisa parecida: que vinha para fazer história.
Perto dos 200 jogos pelo Inter, Andrezinho busca a idolatria (Foto: Jefferson Bernardes / VIPCOMM) São quase 200 jogos pelo Inter (198). É uma trajetória longa já...
Sempre, na minha vida, busquei desafios e objetivos. Quando cheguei aqui, tinha claro na minha cabeça que queria virar ídolo do Internacional. Eu estava na Coreia, e todo mundo conhecia o Internacional, tanto que o clube foi fazer uma excursão lá com o time B. Foi melhor do que a expectativa, que era de voltar ao Brasil. Sempre confiei no meu futebol, mas passei quatro anos em um lugar mais afastado. Por mais que você tenha sucesso, é difícil encontrar quem realmente banque sua contratação. Aqui no Inter, encontrei isso. Quando vi a estrutura, o time, me senti em casa. Com seis meses, parecia que eu estava no Inter há dez anos. A cada ano, a perspectiva fica maior. Falo: “Quero ser ídolo”. Sempre pensei nisso, sempre estive muito convicto disso, de ser ídolo do Internacional.
Já vi algumas vezes você falando das experiências na Coreia. Deve ter muita história engraçada.
Eu poderia ficar dois dias contando. Teve uma muito engraçada, que não sai da minha cabeça. As pessoas acham que é piada, mas não é. Quando cheguei lá, o time não tinha intérprete, e eu não falava nada, nem Inglês. Eu ia pelo Rogério Pinheiro, o zagueiro, que estava lá e me ajudou muito. Tudo que ele falava, eu acatava. Uma semana depois, contrataram um intérprete. Ele ia para cima e para baixo comigo. Faltando dez dias para começar o campeonato, foi convocada uma reunião na sala da musculação. Chegamos lá, entramos na sala e fizemos uma roda. Todo mundo ficava com as mãos para trás, por respeito. O treinador ficou no meio e mandou todo mundo virar de costas, mas a sala era toda espelhada. Os coreanos, muito obedientes, viraram e ficaram de cabeça baixa. Eu virei de costas e comecei a olhar pelo espelho. Aí ele chamou um jogador no meio da roda e começou a falar com ele em coreano. O jogador saiu e voltou com um taco de sinuca. E eu olhando aquilo pelo espelho. O treinador desmontou o taco e pegou a parte de baixo, a mais grossa, e então chamou um moleque. Ele mandou o moleque tirar as calças, ficar só de sunga, e deitar em um aparelho de flexão. Ele pegou aquilo lá e bateu umas dez vezes na perna do moleque. Eu só ouvia os estalos. Aí o moleque levantou e ele ordenou: “Anda”. Mas ele não conseguia. Caía. Só que não chorava. Eu via aquele vergão no moleque, todo roxo. Chamei o intérprete, perguntei que loucura era aquela. E ele me disse que era porque o moleque tinha chegado atrasado. Eu falei que iria pedir para ir embora, mas ele disse que não faziam aquilo com os estrangeiros. Aí fiz amizade com o jogador. Ele fez intercâmbio no CFZ, do Zico, e falava um pouco de Português. Eu ensinei um monte de palavrão para ele em Português, e ele para mim em Coreano. Coloquei nele o apelido de “Sacanagem”. No jogo, eu xingava: “Tá de sacanagem, Sacanagem?”. (Risos)
Você não se assustou?
Era estranho. A gente fazia jogos amistosos, e o treinador de times universitários chamava os caras na beira do campo para dar instruções e dava tapas e socos na cara.
Tua lição foi nunca chegar atrasado...
Profissional ao extremo! (Risos). Teve um jogador que não passou hidratante no rosto, aí ficou com umas manchas, e o treinador quebrou uma lata de lixo na cabeça dele. Perguntei a uns coreanos se isso ainda acontece, e me disseram que é normal. O Sacanagem me disse que é assim na escola também, no Exército, que é assim mesmo.
Que fim deu o Sacanagem?
O Sacanagem foi pra seleção, disputou a última Copa. Ele esteve no Japão, no Yokohama Marinos, e agora acho que voltou para a Coreia.
Lá se vão quatro anos de Inter. Qual você acha que foi seu melhor momento?
Foram vários. Destaco o momento que tive com o Falcão, a sequência que tive antes da contusão, e também aquele momento antes de me machucar, na Copa Suruga. O gol contra o Flamengo foi importante, os gols contra o Paraná também, mas falo pela sequência. Sempre disse que queria ter uma sequência. Foi isso que fez meu futebol evoluir.
Você teve que se adaptar a Porto Alegre ou isso é bobagem para um cara que morou na Coreia?
Se com nove anos saí de casa para ir para o Rio, se depois fui morar na Coreia, adaptação é o de menos. Não pode se apegar a isso, usar isso como desculpa. O futebol é diferente, a cultura é diferente, mas a bola é redonda, o campo tem o mesmo tamanho. Não tive problema com isso.
O que representa essa Recopa pra ti?
É um título que não tenho, e um título internacional. Para ser ídolo em um clube, tem que ganhar títulos. Não adianta jogar bem se não conquistar títulos. O Inter sempre ganha títulos internacionais. Não pode quebrar essa escrita. São dois jogos. É um título que com certeza vai ficar marcado na carreira de todo mundo. Desde que cheguei aqui, levantei uma taça todos os anos. Já ganhei o Gauchão, mas quero a Recopa.
O que você planeja para seu futuro? Se é que faz planos...
Vivo a cada dia. Depois que alcancei um objetivo, crio outro. Meu objetivo hoje é ser campeão brasileiro, cumprir meu contrato no Inter, ser ídolo do clube. O que conquistei, o reconhecimento, tudo isso me deixa orgulhoso. Não tenho razão para não pensar na Seleção Brasileira. Joguei em todas as categorias de base e na sub-23. Seria a realização de um sonho. Claro, para isso tenho que ter um bom trabalho no clube.
Você falou mais de uma vez em se tornar ídolo do Inter. Acha que ainda não é?
Olha... Não sei. Tenho um carinho grande da torcida, mas acho que preciso ganhar um título importante, como o Brasileiro, que faz tanto tempo que o Inter não ganha. Pelos gols, pela importância, se não sou, estou perto de ser.
Você sempre foi, reconhecidamente, muito importante, mas nunca foi o protagonista no Inter. Isso te faz falta?
Vaidade zero. O que é ser protagonista? É fazer um gol de título? Mas para fazer um gol de título, tem que chegar à final. Modéstia à parte, fiz um gol contra o Sport, em 2009, que levou o Inter a uma classificação para a Libertadores. A memória às vezes é muito curta. A importância de ser protagonista vai da cabeça das pessoas. O importante é saber que é importante. No Gauchão, os gols em Gre-Nais foram importantes. Só de fazer gols assim, já me sinto protagonista.
Andrezinho ficou magoado por não jogar no Mundial
(Foto: Alexandre Alliatti / Globoesporte.com) Se sua passagem pelo Inter terminasse agora, do que você lembraria mais?
Posso te detalhar três momentos: o gol contra o Flamengo (de falta, pela Copa do Brasil de 2009), pela circunstância, por ser o clube que me revelou, por tudo que estava envolvido; o gol do Gre-Nal (decisão do Gauchão de 2011), com a perna machucada, pela forma como estava; e o título da Libertadores. Só três dias depois que caiu a ficha de que eu era campeão da América. São três imagens muito fortes. Pelo lado ruim, o momento mais triste com certeza foi o Mundial, pela derrota. Fiquei mais machucado, mais triste, por nem ter podido entrar no jogo. Isso me deixou plenamente magoado, chateado. Não pude jogar, ajudar de alguma forma. Não que eu daria a vitória... Mas nem pude tentar.
Magoado com quem? Contigo mesmo? Com o Roth?
Comigo, não. Sempre confiei em mim. Nós, jogadores, temos autocrítica. Eu estava me sentindo bem. Eu vinha bem. Foi uma opção. Mas passou. Dos momentos ruins, tiramos o aprendizado.
Bateu uma angústia de ver o mundo caindo em campo e não poder fazer nada?
Muito. Muito. Muito. Foi uma vergonha. Tirei férias triste. Estava perto das pessoas que depositavam confiança, família, amigos... O Brasil parou para ver um jogo daqueles. Escutava uma piadinha aqui, uma piadinha ali. O duro era ter que responder por que não joguei. Era algo que me deixava chateado, mas feliz de as pessoas pensarem que eu poderia ter entrado. Os mais supersticiosos dizem que poderia ter uma falta, isso ou aquilo. Fica o aprendizado.
A torcida vive momento de preocupação. Teve a perda da Libertadores, a campanha no Brasileirão não é das melhores, já são três semanas sem técnico... Você pode garantir que vem coisa boa por aí? Pode dar ao torcedor a convicção de que a safra de títulos não terminou?
Não tenha dúvida disso. Os torcedores só cobram quando podem. Ninguém tira leite de pedra. O Inter, nos últimos cinco anos, vem conquistando todos os títulos possíveis. Nesse momento instável, já temos a possibilidade, daqui a duas semanas, de levantar uma taça importante como a da Recopa. O torcedor tem que confiar. Vamos fazer de tudo para conquistar esse título.